Corre o mês de Novembro de 1922 e Manuel, Bispo de Coimbra, decreta o interdito à música do Troviscal, filarmónica que assim se vê impedida de participar em festas e atos religiosos. E a proibição não se limita à banda, estende-se a cada um dos seus elementos, ainda que incorporados noutras filarmónicas. E qual o motivo de tão severa pena contra músicos amadores? Apenas um, a banda ter integrado o cortejo de um funeral realizado sem cruzes ou padre. Um funeral civil! À fúria persecutória do Bispo respondem os excomungados e demais ofendidos decidindo a interdição do clero na freguesia, até que à música seja permitido exercer a sua profissão em toda a parte. A partir desse dia e até ao fim da interdição, em 1939, mantém-se um braço de ferro que afasta o clero da aldeia. Este é um notável episódio de solidariedade e resistência popular contra a intolerância e prepotência da Igreja. E é um marco, na longa e dura luta pela construção do Estado laico.
In GRANJO, Silas – “Troviscal Republicano (1922-1939) – Banda Excomungada Clero Interdito), Lisboa, Sitio do Livro, 2010
O desenrolar de acontecimentos cujo culminar é a interdição de uma banda de música, trata-se de uma questão de grande importância e peso sociológico, não só para a vila do Troviscal, como igualmente para uma melhor compreensão da história do republicanismo em Portugal e do século XX.
Com a alvorada da 1ª República, o Troviscal, modesta, aldeia à época, do concelho de Oliveira do Bairro, no distrito de Aveiro, torna-se num importante bastião dos novos e vanguardistas ideais de Igualdade, Liberdade e Fraternidade, adotados da Revolução Francesa, assumindo suas gentes uma posição próxima ao republicanismo mais fundamentalista, na linha de Afonso Costa, o que valeu inúmeras e acesas disputas, essencialmente com a igreja católica. A excomunhão de uma banda e dos seus membros não foi, portanto, inocente, foi um ato de guerra, ou digamos, de retaliação meramente politica entre republicanos, dos quais a banda era uma bandeira, e monárquicos, aos quais o clero sempre esteve associado.
Já antes de 1910 que se vivia num clima de crença que a monarquia cederia, organizando-se comícios e tornando a aldeia num centro cultural e ideológico de toda a região. É portanto neste clima que, após a implantação da república, o Troviscal começa a reivindicar para si o centro decisório no concelho e assumindo-se quase como “uma república, dentro da república”, tais eram os numerosos apoiantes desse regime, sedentos de pensar pela sua própria cabeça.
No Troviscal a Junta de Freguesia assumia uma posição de poder nunca vista anteriormente, nem tão pouco em qualquer outro lugar. A situação atinge o seu auge com a posição de força, tomada contra o governo central, chefiado por Pimenta de Castro, ao qual os republicanos troviscalenses recusaram obediência e não permitiram que a sua passagem pelo poder se fizesse sentir por estas bandas.
Assim surge a figura de Manuel de Oliveira Mota, republicano responsável por “derrubar” aquele que seria o presidente da Junta de Freguesia 'pimentista”, ou seja, nomeado pelo Governo de Pimenta de Castro, no Troviscal, quando este assumiu o poder. Tal acontecimento teve direito a honras de placa, ainda hoje presente no local onde tal se sucedeu.
Tal ato não podia ser mais premonitório, uma vez que poucos dias após, em Lisboa, caía o governo de Pimenta de Castro, substituído por uma Junta Constitucional.
Assim nascia a República do Troviscal.
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