Estava-se pelo dobrar do século XX, ali mesmo juntinho à boca da
vala, no lado direito, existia uma propriedade da família Roquette,
com uma grande plantação de vinha. O rendeiro vitivinicultor, José
Lino, todos os anos, dava trabalho a um rancho de mulheres. Uns
metros acima, mesmo na entrada do Bico da Goiva, onde as águas do
rio Tejo, e as da Vala Real se encontravam existia duas construções
em madeira – eram as casas de dois casais de pescadores; Na
família do Ti, Padinha do Vau, havia dois filhos, a Florinda e o
João.
A Ti Laura Soizeira, era a outra família, que também tinha dois
filhos;. Um rapaz e uma rapariga, esta de nome Olinda. Muitos anos
depois, a Florinda, casou com um pedreiro da vila, que veio a ser
empreiteiro em Setúbal, e o irmão João Padinha, casou com a vizinha
Olinda. O rapaz, da Ti Laura, quando jovem adolescente, passou a
ser um visitante assíduo das cadeias, tinha entrado numa quadrilha
de assaltantes de galinhas e gado. A vinha, tinha estado em repouso
desde Setembro passado, época da última vindima. As cepas,
precisavam agora de poda, para iniciarem um novo ciclo de vida.
Aqueles dias de Inverno, eram iguais a tantos outros, nada mudara.
Ainda a claridade, estava longe de dar sinais, já em muitas casas
se ouvia os galos cantar, como se fossem um relógio. Nas ruas de
Salvaterra, as mulheres gritavam, umas pelas outras.
De porta em porta, como “ratazanas” em correria, lá
iam aparecendo, o tempo bem visto andava aí pelas 5 horas da
madrugada.
As mais jovens com os filhos, pela mão, ou ao colo, juntavam-se
ao grupo na ponte da vala real. O frio e o nevoeiro continuavam
havia alguns dias, não ajudando nada a caminhada a pé pelo valado,
até à Boca da Vala. Minha mãe, tinha-me feito para usar nas mãos,
uns adornos, de umas meias já muito usadas, onde cortara a parte da
frente, para que os dedos ficassem livres. As outras crianças,
usavam o mesmo agasalho, que nos assentava que nem umas luvas.
Quando o sol dava sinais de si, já todo o rancho estava a iniciar o
trabalho, o capataz, conhecido pela alcunha do "Ramo em Pé" não era
homem de esperas. A rapaziada, era sentada, em volta de uma
fogueira feita com vides (pequenos ramos, das videiras, em época de
poda).
A “rainha” mandara atear, o lume que viria a servir
pelas 10 horas, tempo em que uma mulher mais velhota, começava
aquecer, no Cambariche, as pequenas panelas de esmalte azul,
algumas já muito descoloridas,por tanta queimadura, com a comida
para o almoço. A refeição durava uma hora,tomada em grande pressa,
pois o tempo era escasso e tinham de cuidar também dos filhos. As
companheiras, que não tinham ali os filhos davam uma preciosa
ajuda. O almoço muitas vezes era uma saborosa sopa, feita um ou
dois dias antes para a ceia)(1). Alguns homens, aproveitavam o lume
e ali faziam o agora famoso "Torricado". Cortavam um pão de quilo
já duro, ao meio,faziam com a navalha,pequenos
quadrados,espetavam-no numa vara que verga-se (de salgueiro, ou de
marmeleiro) e, a uma distância, que num lume brand o pão torrava
até aloirar levemente.
Este era depois, untado com toucinho cozido, azeite ou alguma
sardinha assada. Era por vezes o almoço dos trabalhadores rurais. A
pequena Olinda, desde a nascença dificiente num pé, brincava mais
com as raparigas. Os rapazes, à falta de outro entretém, escolhiam
como alvo um pequeno aramado, que servia de capoeira, dos
galináceos da Ti Laura. Um galo de grande porte, daqueles com
cores; verde, azul e avermelhado, com uma crista bem vincada, que
pedia meças a um pedaço de carne, pendurado debaixo do bico. O
bichano, defendia com galhardia o seu espaço, dando grandes saltos,
de peito em riste e, com as patas em sinal de ataque, mostrando as
unhas, fazia-nos desertar para longe da contenda. As duas famílias,
pescavam em pequenos barcos varinos(conhecidos por bateiras),nas
águas do Tejo e, a venda do peixe era feito no cais da vala de
Salvaterra de Magos.
Ali estavam sempre dois guardas-fiscais, do Posto daquela
polícia, sediado num edifício junto ao Fontanário do antigo Largo
de S. Sebastião. A Ti Laura, tinha de remar durante horas a fio,
para colmatar todo aquele esforço, afogava-se nos no vinho, cuja
garrafa tinha sempre à mão. Então ouvia do marido; Bebe…
Bebe… Laura, que és um homem aos remos. O povo rural,
depressa passou a usar aquela forma doentia de incentivar um
esforço de trabalho, especialmente por uma mulher. Muitas e muitas
gerações já passaram, ainda aqui e ali se ouve em Salvaterra de
Magos, esta “bizarria”. Bebe, Bebe, Laura…! És
um homem aos remos
Foto de: Luis Vasconcelos - 1983 (Jornal O Diário) JOSÉ
GAMEIRO
Ainda se consegue ver o pouco que resta destas casas na margem
direita (outro lado da margem da vala) no caminho para a cache
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