Montalegre, 11 de Janeiro de 1970—Avisado por um amigo de que havia hoje cá na terra uma chega de toiros, meti-me a caminho debaixo dum temporal desfeito, e tanto teimei com a chuva, o vento e o granizo, que consegui chegar a horas de assistir ao combate. E value a pena. Se há em Portugal meia dúzia de espectáculos que mereçam ser vistos, este é um deles. Primeiro, as bichezas, depois de nove voltas propiciatórias à capela do orago e da sanção da bruxa, a sair dos respectivos logarejos, rodeadas pela juventude dos dois sexos, enquanto o sino toca a Senhor fora e o mulherio idoso reza implorativamente aos pés do Santíssimo; a seguir, a chegada dos cortejos ao Toural da vila, as cerimónias preliminaries do encontro — vistoria rigorosa dos animais (não tragam eles pontas de aço incrustadas nos galhos), a escolha do piso, etc.; finalmente, a turra – os dois bisontes enganchados, cada qual a dar o que pode, no esforço hercúleo de não perder um palmo de terreno, ou ganhá-lo, apenas cedido. Turra que dura eternidades de emoção, e só termina quando uma das bisarmas fraqueja, recua, e acaba por fugir. Não é, contudo, a luta gigantesca, apesar de empolgante, o que mais diz ao espectador forasteiro. É o halo humano que a envolve, os milénios de ancestralidade que ela faz vir à tona da assistência. Símbolo de virilidade e fecundidade, o boi é na região o alfa e o omega do quotidiano. Cada povoação revê-se nele como num dues. Vitorioso, cobrem-no de flores; derrotado, abatem-no impiedosamente. Quando há minutes a turra acabou, depois de a viver numa tensão de que a palidez de um padre a meu lado era a síntese, toda a falange que torcia pelo vencido parecia capada.
(Miguel Torga in “Diário XI, pag. 68/69