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O Dente-Santo de Aboim da Nóbrega Traditional Geocache

Hidden : 1/27/2009
Difficulty:
1.5 out of 5
Terrain:
1.5 out of 5

Size: Size:   small (small)

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Geocache Description:

O DENTE-SANTO DE ABOIM DA NÓBREGA


E A LENDA DE S. FRUTUOSO (Abade)

J. A. PIRES DE LIMA

(Sessão científica de 3 de Junho de 1921)

Professor da faculdade de Medicina do Porto

Apresentação de Manuel Martins

 Em princípios de Novembro de 1920, os jornais noticiosos referiram-se largamente a um curandeiro que foi preso no concelho de Vila Nova de Gaia por andar tratando indivíduos mor­didos por cães raivosos.
Manuel Martins Chamava-se Manuel António Martins, tinha 54 anos, e morava na freguesia de Aboim da Nóbrega, concelho de Vila Verde. Possuía um «dente-santo» que teria mais de oitocentos anos, pertencera a S. Frutuoso e gozava do privi­légio de prevenir a raiva, desde que fossem benzidas com ele as pessoas mordidas de cão danado.

Ao ser preso, apreenderam-lhe o dente-santo, recomendando insistentemente o Martins que não lho perdessem; e acrescentou que, ainda que tal sucedesse, o dente iria ter milagrosamente a sua casa.

Dos autos do corpo de delito por burla, em que foi arguido Manuel António Martins, consta o seguinte: César Ferreira, resi­dente na Praia da Granja, suspeitando que uma sua vaca fora mordida por um gato raivoso, e sabendo que o Martins ou “Dente-santo”, viera a Espinho benzer umas pessoas, mandou-lhe pedir para ir também benzer a vaca, o que ele fez, declarando que todas as pessoas e animais mordidos de cão danado ficavam radicalmente curados, desde que fossem benzidos com o dente-santo e se lhes aplicasse a reza de S. Frutuoso.

Ao auto de perguntas respondeu Manuel António Martins ser casado, lavrador, filho de João Batista Martins; que nunca estivera preso nem respondera em processo e que, há alguns anos a esta parte, procurava por meio de rezas fazer o trata­mento da raiva a pessoas e animais. Houvera dias que o chamaram à Granja, onde benzera grande número de pessoas. Garantiu o Martins que o tratamento que aplicava, isto é, as rezas e a benzedura com o dente de S. Frutuoso, torna desnecessário o tratamento médico.

O dente-santo pertenceu já a seu pai, avô e outros antepas­sados, que como ele exerciam a mesma profissão. Afirmou Mar­tins: “Benzi diferentes pessoas mordidas por animais rai­vosos e nenhuma delas se danou. Aquele dente já tem oitocentos anos e faz curas milagrosas. Vou a qualquer parte onde me chamem para benzer os mordidos de cão danado, desde que se responsabilizassem pelas despesas.”

O agente do Ministério Público, Sr. Dr. A. de Alpoim, aten­dendo a que o Martins não tratava de angariar clientes, que, pelo contrário, acorriam pressurosos suplicando-lhe que os benzesse; e que, além disso, ele é um crente sincero nas vir­tudes do dente-santo, promoveu que se arquivasse o processo e que o dente, para que em ninguém mordesse, fosse enviado ao director da faculdade de Medicina, para que ficasse ali arreca­dado, como prova do “que foi, é, e será por largo tempo, a crendice popular”.

Em conformidade com essa promoção, o juiz remeteu o dente-santo ao Sr. Director da Faculdade de Medicina, que o confiou à minha guarda.


Apresentação da curiosa relíquia à Sociedade r

O dente-santo está guardado numa caixa de prata, composta de dois cilindros irregulares, ocos. A parte superior, ou tampa, é de forma cilíndrica, irregular, está bastante amassada e apresenta, junto do bordo livre, uma extensa brecha disposta ver­ticalmente. Mede 55 milímetros de altura e 34 de diâmetro má­ximo. Ainda junto do bordo livre tem fixa uma argola de prata, fro nteira a outra que se encontra junto do bordo que está tapado. Por essas argolas passa um cordão de lã preta a que logo me vou referir.

Do outro lado estariam dispostas simetricamente outras argolas: a correspondente ao bordo livre desapareceu, havendo no seu lugar um buraco que atravessa a caixa. A argola que está na mesma linha, junto do outro bordo, está rota, gasta pelo uso. Entre as duas argolas que ficam ju nto do bordo tapado vê-se, dum lado e do outro, um sinal, cuja significação não pude determinar.

A parte inferior é também um cilindro oco, irregular; é a que recolhe o dente-santo, com a fita que o sustenta, e tem um bordo livre muito irregular e com diversas falhas. Junto desse bordo encontram-se dois buracos, dispostos um defronte do outro. A um deles está amarrada uma fita, da qual pende o dente de S. Frutuoso.

Esta parte é mais estreita e mais longa que a primeira, na qual encaixa; mede 63 milímetros de altura e 33 de diâmetro máximo. Junto da base desta peça há uma faixa de um centíme­tro de largura, limitada por dois bordos salientes. Nessa faixa vêem-se fixas também duas argolas de prata, por uma das quais passa uma grossa cadeia do mesmo metal.

A fita a que me referi é de algodão vermelho escuro, mede 62 centímetros de comprido e 22 milímetros de largura, e prende-se a uma argola que está unida a uma espécie de berloque cilindro-cónico de prata, onde está encastoado o dente-santo.

Aquela peça metálica tem 3 centímetros de comprido e 13 milí­metros de diâmetro máximo. O dente-santo é um grande molar humano, muito amarele­cido pelo tempo; irregular, multicuspídeo, só uma parte da coroa está fora do engaste. Mede 11 milímetros de largura e 7 de es­pessura.

O cordão de lã tem 47 centímetros de comprido, passa pelas argolas a que me referi e está amarrado pelas suas duas extre­midades a uma grossa corrente de prata de 77,5 centímetros de comprimento. O cordão de lã e a corrente serviam para lançar ao pescoço do benzedor, quando ele fazia aplicação do dente de S. Frutuoso. No fundo da caixa que o encerra, encontra-se um bocado de estopa para amortecer os atritos à preciosa relíquia. A estopa está irregularmente corada de vermelho, certamente pelo contacto da fita, que por vezes seria recolhida húmida.

A caixa de prata, com todos os seus anexos, pesa 115 gra­mas. Consultado o ilustrado ourives Sr. Rosas, sobre a antigui­dade da caixa, manifestou a opinião que ela não teria menos de duzentos anos, sendo a corrente muito mais moderna.

Assim acabou, tão prosaicamente, recolhido a um Museu, um objecto que tantos milhares de pessoas olhavam como sa­grado!


Tradição popular e literatura do dente-santo de Aboim da Nóbrega

Esta freguesia seria outrora a sede de muitos solares de fidalgos, e daí lhe provirá o nome. Julga o povo destes sítios que S. Frutuoso era dali e ainda hoje o venera em duas capelas (Sande e Senhor da Paz do Mundo). Como quer que seja, dizem "que, há vários séculos, existe em Aboim o dente de S. Frutuoso, na posse da família de “Os do feitor” ou "Dentes-santos”. Diz a lenda que o próprio S. Frutuoso o ofereceu a um fidalgo, o qual, tendo dissipado toda a sua fortuna e morrendo solteiro, o legou, à hora da morte, a um criado; declarou-lhe que o tinha recebido do próprio S. Frutuoso, que lhe dissera o seguinte: “Quem possuir este dente não será rico, mas será sempre remediado, e nunca passará necessidades. Só poderá ser possuído por um varão. Indivíduo que fosse mordido por cão danado, sendo benzido com o dente-santo, não tinha perigo; não há exemplo de que ninguém tenha morrido danado na freguesia de Aboim.”

Todo o povo daquelas redondezas acredita piamente na eficácia do dente de S. Frutuoso, e “Os do feitor”, conquanto criaturas absolutamente incultas, eram muito respeitados e todos recorriam a eles em caso de mordedura por cão raivoso.

                O ensalmo usado pelo «Dente-santo» era o seguinte:

                "Em nome do Padre, do Filho, do Espírito Santo E de S. Frutuoso

                Eu te benzo

                E, tocado por mim, nunca serás raivoso.»

  «O do feitor», para benzer os mordidos, ou o pão que eles deviam comer, deitava a cadeia de prata ao pescoço e segurava com a mão direita o dente-santo, fazendo com ele cruzes, en­quanto pronunciava as palavras do ensalmo (acima descrito).

Parece que o dente de S. Frutuoso já há séculos estava de posse da família d’ «Os do feitor». Obedecendo à tradição, o dente não devia passar da linha masculina. Uma vez, talvez no tempo do bisavô de «João do feitor», João Manuel Martins, pai de Manuel António Martins, o detentor do “dente-santo” teve ape­nas uma filha legítima, que, por ser «varoa», não podia herdar a relíquia.

Diz-se que o pobre homem, já idoso, se lamentava por não poder deixá-lo a um membro da sua estirpe, quando várias mulheres do sítio, comovidas com os seus queixumes, se lhe ofereceram para que ele, num derradeiro esforço, procurasse haver um autêntico herdeiro para o “dente-santo”. Efectivamente, diz a tradição que uma das moças teve a glória de gerar um filho varão a quem coube a honra de perpetuar a dinastia.

Esta família, conforme a promessa de S. frutuoso, nunca foi rica, mas também nunca teve necessidades. O último possuidor do dente é um pequeno lavrador e ganhava bastante dinheiro com a sua arte de benzedor. Antigamente o ”Dente-santo” rece­bia cinco ovos por cada mordido que benzesse; depois passou a levar um pataco, depois seis vinténs e ultimamente exigia dois tostões, além das despesas de viagem. Ia onde o chamavam e tinha larga fama nas províncias do Minho, Trás-os-Montes e Douro, e ainda na Galiza, onde muitas vezes o reclamavam.

O “Dente-santo”, como disse, também benzia pão, que de­pois dava a comer aos homens e animais mordidos, durante alguns dias. Em geral os pães que ele benzia eram as chamadas podas, que são compostas de quatro porções separadas em cruz. Assegura-se que esse pão assim benzido jamais ganhava bolor, ainda que se conservasse durante dois ou três meses. Não há dúvida que a tradição do “dente-santo” de Aboim é antiga, estendendo-se para muito longe. Conta meu Pai que, há talvez mais de sessenta anos, se lembra de que, estando ele em Carreço (Viana do Castelo), chamaram ali o "Dente-santo” de Aboim, para benzer uns indivíduos mordidos por cão raivoso, e que ele benzia também moletes que os mordidos deviam comer.

«Os do feitor» são porventura os últimos representantes em Portugal dos antigos salutatores, saludadores, saüdadores, ou benzedores.

O povo considerava outrora duas castas de pessoas dotadas de poderes sobrenaturais: urna, a dos feiticeiros de ambos os ­sexos, recebia do diabo a arte de adivinhar; ainda hoje é, entre nós, muito viva a crença nas bruxas e feitiços. A outra era de Deus que recebia extraordinários poderes: refiro-me aos saludadores ou benzedores, que hoje quase desapareceram da tradição portuguesa mas que, pelo menos há poucos anos, ainda estavam muito em voga na Espanha.

Adolfo Coelho produziu uma longa e erudita dissertação ­sobre os saludadores e outras pessoas dotadas de poderes sobre­naturais e Brás Luís de Abreu apresenta-nos as regras para distinguir um autêntico benzedor dum mistificador qualquer que deseje usurpar aquela grave qualidade. Se o benzedor, quando intenta curar a hidrofobia, aplica um bocado de pão que tenha sido por ele primeiro mastigado, trata-se, segundo o «Olho-de-vidro» de um “supersticioso, & embusteiro; porque a graça de curar não necessita de ajudar-se de semelhantes remédios, e circunstancias. (…) Há quem diga que os que nascem em sexta-feira santa trazem consigo aquele dom. São embusteiros (impostores), maliciosos, ou ímpios, prejuros & suspeitos de pacto"_ segundo Brás Luís. Enquanto que os feiticeiros eram duramente castigados pelas leis portuguesas, os benzedores, desde que fossem devi­damente autorizados, podiam exercer Iivremente a sua mila­grosa arte.

Em Espanha preveniam os efeitos da hidrofobia dando um saludador a comer aos mordidos de cão danado pão sem sal. O saludador prevê por meio da cristalomância se uma mor­dedura de cão danado estaria ou não destinada a provocar a raiva. Na estação mais perigosa, o saludador andava de aldeia em aldeia benzendo os gados e saudando-os em nome de Deus. Era tão forte em Espanha a crença nos saludadores, que havia aldeias onde eles estavam avençados como os médicos. O saludador nasceu em sexta-feira santa às três da tarde em ponto, hora precisa a que morreu Jesus; tem uma cruz no céu da boca e chorou três vezes no ventre de sua mãe, que do fenómeno guardou segredo. Vive dos proventos que lhe dá o exercício da sua profissão de benzedor de mordidos de cão raivoso.

 

Lenda de S. Frutuoso

Atraves­semos agora o Marão e vejamos o que resta em Constantim da Cabeça de S. frutuoso. Vejamos também o que pude averiguar, quer na tradição trasmontana, quer na literatura, sobre a vida e os milagres de S. Frutuoso, e confrontemos a Ienda de Trás-os-Montes com a do Minho.

S. Frutuoso seria natural da freguesia de Constantim, perto de Vila Real, no século XII, filho único de um rico e honrado lavrador. Desde criança se fez notar pela sua piedade. Sua mãe mandava-o enxotar os pássaros das semen­teiras, e as avezitas tinham-lhe tanto respeito que, à sua voz, recolhiam a uma pastoril choupana, da qual não saíam até que o santo menino lhes desse a liberdade. Logo veremos como ainda perdura na tradição tão ingénua lenda.

Foi abade de Constantim, fazendo uma peregrinação a Roma e a Jerusalém. Pouco depois de voltar, morria, enterrando-se na igreja em que foi pároco. Mais tarde o seu corpo foi trasladado para um túmulo condigno “deixando-se fora o craneo para consolação dos fieis, q pelo circulo do ano, acorrem ao local com titulo de Cabeça Sancta, a qual tem particular prerogatiua para­ sarar mordidos de cães danados, & preservar de corrupção o pão q nela se toca. Finalmente levada esta sagrada relíquia surriticiamente para Galiza no ano 1540 (Que sempre teve nesta nação Portuguesa, graves ladrões dos seus Sanctos!) depois de estar lã algú tempo, quando senão percatarão, appareceu com patente milagre no altar de sua Igreja, em q de presente se guarda num decente nicho, aberto no cõcauo da parede, com grades dou­radas ".

Como se vê, já no século XVll, George Cardoso dizia que a Cabeça de S. Frutuoso preservava de corrupção o pão que nela tocasse. O mesmo se diz hoje em Vila Verde, como vimos, do pão que fosse benzido com o “dente-santo” de Aboim.

Á cabeça de S. Frutuoso Abade se atribui o facto de ter sido roubada para a Galiza. O mesmo percalço teria tido o corpo de S. Frutuoso Arcebispo, que de Braga seria furtado por um bispo da Galiza. Devemos confrontar também a parte da lenda que fala do reaparecimento milagroso da Santa-Cabeça em Constantim, com as recomendações de Manuel António Martins, a propósito do seu “dente-santo”: - que não lhe perdessem o dente; mas que, ainda que tal sucedesse, ele iria ter a sua casa...

Dos princípios do século XVIII encontrei outra notícia acerca da Santa Cabeça. Refere o P. Carvalho que na igreja paro­quial de Constantim está sepultado o corpo de S. Frutuoso, que uns dizem ser natural daquela freguesia, afirmando outros que se trata dos restos de S. Frutuoso, arcebispo de Braga. Segundo o autor da Corografia “suas relíquias são visitadas de muitos devotos, que experimentam o patrocínio do Santo em suas supli­cas, & se lhe dá a beijar a sua cabeça, que se guarda com grande decência em um Sacrário, e vulgarmente se chama a Cabeça santa de Constantim, & com o contacto desta relíquia experi­mentam muitos enfermos remédio em seus achaques, particular­mente as pessoas mordidas de animais danados, sendo eficaz antídoto contra o venenoso de tão perniciosa enfermidade “.

Boaventura Maciel Aranha fornece-nos novos dados sobre a vida do nosso santo, a quem chama S. Frutuoso Gonsalves, Cónego Regrante de Santo Agostinho e Abade de Constantim. Afirma que ele fora prior do Mosteiro de S. Martinho de Cáramos, que era distante de Braga cinco léguas. D. Afonso Henriques doara àquele mosteiro a igreja de Santa Maria de Constantim em 1154 e S. Frutuoso foi então nomeado abade da referida igreja. Fizera construir ali uma capela dedicada a S. Frutuoso, Arcebispo e recomendara que o enterrassem ao pé do altar daquele santo. Efectivamente, assim o fizeram, mandando abrir na sua sepultura o seguinte epitáfio: «Aqui jaz sepultado em terra, o célebre Abade Frutuoso, cuja alma esteja no Céu, pois amou, e guardou tão bem as suas ovelhas. Faleceu cheio de merecimentos aos 4. dos Idos de Novembro da era de 1200., que he era de Christo 10. Novembro de 1162». Naquela sepultura fez portentosos milagres até 1216; então o arcebispo de Braga fê-lo trasladar para uma urna de pedra, mas deixou fora o crânio, que mandou encastoar em prata, para assim ser tocado dos devotos, que concorrem a invocá-lo com o título de “Cabeça-Santa".

D. Frei Bartolomeu dos Mártires venerou aquela santa relí­quia, bem como os seus sucessores, até que «grandes ainda que piedosos Ladrões a levaram para a Galiza em 1540».

Boaventura Aranha repete a narração do milagre do reapa­recimento da Santa Cabeça no altar da sua igreja de Constantim e fala dos prodígios que ela obra, isto é: preserva da corrupção o pão que nela toca e sara as gentes e todos os irracionais mor­didos de cães danados que chegam a vê-la. O terceiro prodígio consiste no seguinte: os lavradores daquela região vão tocar na Santa Cabeça com espigas de milho, que depois utilizam para semear. Milho nascido daquela semente nunca é devastado pelos pássaros.

Em 1321, ainda segundo Aranha, D. Dinis fizera várias doações à Santa Cabeça, de quem seria muito devoto, pois que, tocando-a, ficara são duma dor de cabeça que havia tempos o molestava.

Dos séculos XIX e XX conheço na literatura apenas duas breves e inexactas notícias sobre a Santa Cabeça. Pinho Leal referindo-se a Constantim de Panoyas diz: «Aqui nasceu S. Frutuoso, advogado contra as mordeduras dos cães danados. Na igreja matriz da freguesia, que é muito antiga, se conserva ainda a cabeça deste santo que os romanos degolaram».

O meu prezado colega Dr. António Feliciano enviou-me alguns dados muito curiosos, que lhe foram fornecidos por um ilustre sacerdote. Corroboram em grande parte as informações colhidas por mim na literatura e na tradição popular e acrescentam o seguinte: 5. Frutuoso nasceria em Torgueda, perto de Vila Real. Foi cónego regrante de Santo Agostinho no mosteiro de Cáramos e depois prior desse mosteiro, para onde foi nomeado em 1124, renunciando à prelasia em 1130, para fazer uma pere­grinação à Terra Santa. De volta a Portugal foi apresentado para a freguesia de Santa Maria de Constantim, a qual pastoreou durante oito anos, morrendo então. O seu sucessor, o cónego regrante D. Afonso mandou erigir-Ihe um mausoléu, onde se lia o seguinte epitáfio: «Hic jacet interrisFructuosusAbbascelebris , custos e amicusgregis ; ejus anima sitincoelis . Obiitplenusmeritis IIII IdusNovembris , era bis centesimamilesima ».

Durante séculos esteve seu corpo sepultado na igreja de Constantim, donde foi trasladado para Braga, segundo alguns, excepto o crânio que ficou na dita igreja.

Vejamos agora a que estão actualmente reduzidas as suas relíquias e estudemos como a vida daquele bem-aventurado passou para a tradição popular trasmontana, conservando-se aí quase imutável através dos séculos.

Existia outrora no adro da igreja de Constantim um túmulo de pedra inteira, com a cavidade própria para receber um corpo humano. Esse túmulo, com a respectiva cobertura, foi em tempo aproveitado para umas obras da igreja. Tratar-se-ia da urna de pedra de que fala Boaventura Aranha?

Defronte do altar de S. Frutuoso existe uma pedra com a seguinte inscrição: «Sepultura em que esteve o corpo de S. Fru­tuoso Abade e se trasladou para o altar em 27 de Janeiro de 1764. No altar ainda existe o nicho com a Santa Cabeça, que está encastoada em metal vulgar, porque a prata que a rodeava foi roubada há cerca de 14 anos. O crânio está reduzido à calote, porque parece ter sido cortado aos poucos pelos crentes. Não tem, portanto, nem dentes nem maxilas. No mesmo altar há uma escultura com 0,80 metros de altura, que representa S. Frutuoso; essa imagem servia na festividade em honra daquele santo, que aliás há muito se não celebra. O povo tem ainda hoje muita devoção por S. Frutuoso, advogado dos raivosos e das dores violentas de cabeça. Por ocasião das sementeiras vão pessoas, ás vezes de longe, tocar as sementes no crânio, confiadas em que os pássaros vão fazer estragos nas searas com elas semeadas. Há no povo a crença de que os indivíduos baptizados na igreja de Constantim não são mordidos por cães raivosos e, diz o meu informador, «a verdade é que ainda não se deu o primeiro exemplo».

No referido altar de S. Frutuoso há um caixão argolado, com três arcas fortes de ferro, mas foi em tempo violado. Nele existe a seguinte inscrição: «Por decreto do Ser.mo Snr. D. Gaspar Arc.po Primaz e Snr. de Braga aos 20 de Janeiro de 1764 se trasladou os ossos de S. Frutuoso abade de Constantim e Missionário Apost.o». O que é verdade é que hoje não existem lá tais ossos; apenas se vê no referido caixão uma pouca de terra dentro de duas sacas que estão a apodrecer.

Próximo da igreja há uma fonte denominada de S. Frutuoso; ali vão os romeiros lavar as suas feridas, crentes de que ficam assim radicalmente livres da hidrofobia. Há exemplo de ter mor­rido danada uma criança de 13 anos, que viera de longe cumprir uma promessa. Também se tinha tratado no Porto com as inje­cções anti-rábicas de Pasteur. Diz o povo que, para casos destes, não deve recorrer-se à medicina, mas só aos banhos na fonte de S. Frutuoso; além disso, o mordido não deve trabalhar, mas sim viver de esmolas durante o tratamento. Outras coincidências têm afervorado a crença dos trasmon­tanos, tais como o seguinte caso, que afirmam ser verdadeiro: Um dia apareceu em Cabanas (Vila Pouca de Aguiar) uma loba danada, que mordeu grande número de pessoas, entre as quais um padre, que se dirigiu logo ao Instituto Pasteur de Paris. Os outros mordidos, como não tinham recursos, vieram tratar-se com a Santa-Cabeça. Todos eles escaparam e, pelo contrário, o padre, ao chegar de Paris, morria hidrófobo! A superstição mais se arreigou no espírito popular: várias pessoas de fora de Constantim mandam lá os filhos a baptizar e os que lá são baptizados não têm medo nenhum dos cães danados.

Existe ainda na tradição a lenda do roubo da Santa-Cabeça a que já fez referência. Quando se deu pela falta da relíquia, os habi­tantes de Constantim tiveram uma profunda comoção. Passados tempos, porém, ouvia-se o sino da igreja repicar sem que ninguém lhe bulisse e, nessa ocasião, reapareceu milagrosamente a Santa ­Cabeça na sua igreja. Por todas as freguesias por onde ela pas­sou, desde a Galiza, ouvia-se igualmente um repique misterioso de sinos, sem que ninguém lhes tocasse.

A lenda de S. Frutuoso e da Santa-Cabeça estende-se a vários pontos de Portugal.

                                                                                                                              J. A. PIRES DE LIMA

Additional Hints (Decrypt)

Sbagr qr Qragr-Fnagb

Decryption Key

A|B|C|D|E|F|G|H|I|J|K|L|M
-------------------------
N|O|P|Q|R|S|T|U|V|W|X|Y|Z

(letter above equals below, and vice versa)